25.4.06

o estilo 25

"O carácter popular da «Revolução dos Cravos» impôs uma mudança radical nos hábitos, usos e costumes dos portugueses. Deles só restam, vinte anos depois, memórias difusas que para alguns têm um sabor a nostalgia

«NA SEGUNDA-FEIRA, todos ao Rossio, de calças à boca-de-sino, pulôver vermelho de bico aos ombros, colarinhos até dizer chega, cravo vermelho ao peito, criança às cavalitas forrada de autocolantes e palavras de ordem na ponta da língua!» Os nós das gravatas pareciam babeiros, mas o mais «in» era aparecer em público de colarinho pontiagudo, libertariamente desabotoado, ou aquecer a garganta para o comício permanente com uma gola alta ensinada pelos padres progressistas. As companheiras levavam socas ortopédicas para a manif e um poncho a imitar a América Latina.
Éramos massas populares, não se usava a palavra cidadão e o único carro novo minimamente aceitável era a Dyane. Estavam longe os tempos dos jipes. O mais todo-o-terreno que admitíamos, sem perigo de sermos burgueses, era o R4, sujo do barro da Reforma Agrária, portas e «capot» cobertos de cartazes, um megafone a sair da janela do pendura.
Hoje, lemos a «Olá». Então, só o «Século Ilustrado». Florbela Queiroz, sem o poder da TV, era a Catarina Furtado (Catarina, só há uma, a Eufémia e mais nenhuma) e Lisboa Capital da Cultura chamava-se Martim Moniz, era irmos todos ao Adóque ver Pides na Grelha. Ou a Belém, sendo que o nosso Centro Cultural se chamava Mercado do Povo e recuperava o espaço de um museu de etnologia cheio de peças reaccionárias de memória imperial. A nossa cultura era muito Terra-a-Terra, muito Brigada Victor Jara, e o seu templo eram os jardins e o mais pequeno palanque que comportasse uma montagem de teatro de amadores, iluminada por projectores do FAOJ. Ou o Coliseu. Já nessa altura era o Coliseu, mas nada de Galas de Chuva de Estrelas. Só Circos de Moscovo e Óperas de Pequim, ou espectáculos de solidariedade com o povo do Chile, que fazia, então, a vez do povo maubere, na nossa alma solidária. Não é certo que Quim Barreiros tenha cantado «uma gaivota voava, voava», mas é provável.
Vinte paus era uma fortuna
O antitabagismo era basto fascista. Envenenávamo-nos com Português Suave sem filtro, nada de «lights» nem «vou deixar de fumar». E ai do taberneiro reaça que se atrevesse a escrever na parede «Tabaco só ao balcão». Na Mexicana, no Café Lisboa, no Império, no Monte Carlo, na esplanada de cima do Parque, nos cafés que faziam as vezes da 24 de Julho, ao fim do dia de Revolução, os maços de Porto, que era o nosso Marlboro Lights, vinham à mesa sobre um pires e tudo era pago no fim, com uma nota de Santo António, 20 paus era uma fortuna.
O táxi custava 25 tostões, mas era para burgueses. Embora o passe social só existisse em França, de autocarro verde de dois andares é que se voltava para casa, depois de ver, na sala única do São Jorge, pela 50ª vez, o Couraçado Potemkine, que era o Jurassic Park de há vinte anos, ou o Último Tango em Paris, que sensação! Os abstémios regalavam-se com a Laranjina C em garrafa bojuda, porque a Coca-Cola ainda não aparecera e, mesmo mais tarde, não passava de uma beberragem suja do imperialismo. A Pepsi, sim, por ser engarrafada numa empresa nacionalizada, nossa. Para os outros, bagaço, que o uísque é da CIA, ou Cubas Libres. A vodca era caríssima no Porão da Nau, uma espécie de Crazy Night daqueles tempos.
O Verão era quente e o Rajá substituía as «tartitas quemadas» da Menorquina (Espanha ainda vivia sob Franco, ninguém ousaria comer o Panrico que o diabo amassava), para quem não tinha dinheiro para comer um «banana split» no Apolo 70, espécie de Cascais Shopping de 1974, onde se passeavam os modelos dos Por-fí-rios, a nossa Benetton.
Quando as crianças, que, recorde-se, frequentavam Liceus Femininos e Liceus Masculinos, e não C+S e EBI, reclamavam atenção e se recusavam a passar os fins-de-semana nos centros de trabalho e acampamentos para Pioneiros, estendíamos o bigode zapatista num sorriso amarelo, coçávamos as patilhas, comprávamos bilhetes de segunda classe para Carcavelos (a Caparica era a miragem longínqua de uma colónia de férias da FNAT) e íamos ao banho, de bermudas. É estranho pensar que os repuxos rega-relva da Alameda, nas manhãs ensolaradas dos dias de comício, eram a coisa mais parecida com um aquaparque, mas as modas mudam. Isso vê-se bem, se nos lembrarmos do que acontecia quando os putos tinham fome. O frango assado era uma sofisticação e o termo «hamburger» tinha ressonâncias nazis. Só os exilados que regressavam conheciam os prazeres proporcionados por uma croissanteria. «Pizzas», o que é isso? As Tartarugas Ninja da época eram a Heidi e o Vickie. Sai um prato de bolos, muitas bolas de Berlim, capital da RDA!"


António Costa Santos no Expresso de 23 de Abril de 1994

1 comentário:

h disse...

Este texto está mesmo bom! Até parece que era eu que andava de ponche com sapatos de saltos ortopédicos, a fumar português suave sem filtro!
outros tempos